Neuton Corrêa*
O homem que revirava a lixeira na parada do 422 me fez lembrar o ex-deputado Pirarara. Era um cidadão de braços potentes, cabelos grisalhos e pele branca. O que me fazia associá-lo ao ex-parlamentar eram os detalhes do rosto avermelhado, lábios descascados como escamas de cobra e a boca desnudada.
A última vez que vi o Peixe, em Parintins, ele estava na fila de um mutirão da Prefeitura para experimentar uma dentadura. Naquele dia, balançando a cabeça para cima e para baixo, Marupá comentou perto de mim: “Quem diria! Nem parece que esse homem já foi deputado. E um quase secretário de Estado!”.
Sim, Pirarara já foi um homem poderoso, tanto na política quanto no gado. Era dono de muitas terras, muito gado, muitos barcos. Mas sua fama não veio do mandato nem dos bois que criava. Popularizou-se pelo gênio forte, pelos discursos e pelas tiradas que dava para se livrar dos eleitores incômodos de época de campanha.
Testemunhei uma dessas tiradas em outubro de 1992, quando ele se lançou a prefeito de Parintins. Eram quatro candidatos ao cargo. Fui designado a cobrir a reta final de sua
campanha. Nesses dias, ele fazia jus ao nome. Estava mais escorregadio do que peixe liso.Sem se importar com as condições, um eleitor se aproxima dele e diz: “Sêo Pirarara, eu queria uma ajuda sua. É que o meu filho morreu e eu preciso de um caixão...” Antes que o homem concluísse os argumentos, Peixe respondeu, quase cantando: “Pareeennte, eu não mexo com isso. Quem mexe com isso é o Irío (À época, dono da primeira e única funerária de Parintins). Ele é que sabe fazer caixão. Vá lá com ele”, recomendou.
campanha. Nesses dias, ele fazia jus ao nome. Estava mais escorregadio do que peixe liso.Sem se importar com as condições, um eleitor se aproxima dele e diz: “Sêo Pirarara, eu queria uma ajuda sua. É que o meu filho morreu e eu preciso de um caixão...” Antes que o homem concluísse os argumentos, Peixe respondeu, quase cantando: “Pareeennte, eu não mexo com isso. Quem mexe com isso é o Irío (À época, dono da primeira e única funerária de Parintins). Ele é que sabe fazer caixão. Vá lá com ele”, recomendou.Com a resposta, o homem encarou o candidato e fez outro pedido: “Então me ajuda a voltar para comunidade”. Pirara mostra interesse em atendê-lo e pergunta: “E como posso lhe ajudar?” O cidadão responde: “Me arranja aí um litro de gasolina”. O candidato lhe diz: “Poxa, parente, eu também não mexo com isso. Quem mexe com isso é o Dodó Carvalho (Dono de uma rede de postos de gasolina). Ele é que mexe com isso”.
Mas a história que mais marcou a campanha dele, naquele ano, foi a do discurso que fez em sua terra natal, uma comunidade ribeirinha do rio Amazonas. Lá, ele subiu num palanque improvisado e começou a fazer promessas de eleição:“Povo da Costa do Boto, se eleito eu for, vou aqui mandar construir uma escola. Não será uma escola de madeira, não. Vai ser uma escola em alvenaria”. Do meio do mato, porém, ouviu-se uma voz de oposição que gritava: “É mentira dele.”Pirarara não se abateu e continuou: “Não é mentira, não. Vou construir não apenas uma escola. Aqui também vou mandar fazer uma estrada para escoar a produção de vocês”. Do meio do mato, de novo, a voz cavernosa continuava: “É mentira dele”.
Pirarara mostrou-se ainda mais irritado e aumentou a promessa: “Não é mentira, não, minha gente, povo da terra onde nasci. Não vou construir somente a escola e a estrada. Quando eu chegar no ‘puder’, vou construir a escola, a estrada e um barco, pra levar a produção daqui para a cidade”. A voz do meio do mato gritou: “É mentira dele. Pirarara come gente”.
Pirarara perdeu de vez a paciência e concordou com a oposição: “Come, filho da p... Come gente, mesmo. Come a tua mãe também. Aparece aqui, vem aqui na minha frente que eu vou te comer também”.O 422 apareceu, olhei novamente para o homem da lixeira e embarquei rindo das lembranças do Peixe.
*Filósofo, mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.
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