Por Saulo Borges
Valeu, João! Eu sinto a perda de Joãozinho Trinta como quem sente a perda de um
próximo. Um familiar? Talvez! Nem sei. Talvez nem tanto. Um amigo talvez? Sim!
Talvez? Sim! No mínimo um amigo. É um sentimento que não dá pra explicar
simplesmente. A vontade de chorar vem, a lágrima escorre, e no corre-corre dos
preparativos de mais um desfile, eu talvez não tenha tempo de parar tudo e
sentir, curtir (não sei seria a expressão mais certa), a morte, a passagem de
Joãozinho Trinta.
Saulo Borges e Joãozinho Trinta
Desde
moleque o tinha como um ídolo, uma inspiração, e foi a razão do meu
envolvimento com o carnaval das escolas de samba. Não que fizesse o que fiz e o
que ainda faço para J30. Não é isso. Mas foram os seus desfiles audaciosos na
Beija Flor de Nilópolis e agora do Mundo, por suas mãos inclusive, do Mundo,
que chamaram minha atenção para a festa, para os desfiles e me fizeram amar,
sem limites, o carnaval, a Beija Flor, a Mocidade Independente de
Aparecida.
Lembro de
1986, ainda menino, deitado numa rede em Brasília, quando vi a Beija Flor
desfilar debaixo de um dilúvio, enfrentando a natureza, com as águas chegando
aos tornozelos de seus componentes, no desfile "O Mundo é Uma Bola".
Dali em diante fui arrebatado. Jamais, depois daquele ano, perdi, deixei de
assistir o desfile das escolas de samba. Passei a ter esse encontro marcado com
a festa, nas telas da Globo e da extinta TV Manchete. Assim, acompanhei J30 e
seus carnavais, que desde a década de 70, quando ele fez o Salgueiro campeão e
revelou ao mundo a Beija Flor, com o tricampeonato da minha escola amada de
1976, 77 e 78, desfiles que modificaram a cara das escolas de samba do Rio de
Janeiro e do Brasil e que cresceram com a inauguração do Sambódromo em 1984.
Não vi os
desfiles da Beija Flor de 84 e 85. Fui vê-los com o advento da Internet, que
permitiu com que apaixonados pelo carnaval carioca os postassem em sites como
Yutube. De memória, sem pesquisar na Internet, sei que o enredo de 85 foi
"A Lapa de Adão e Eva". Como disse antes, assisti os desfiles da
Beija Flor com Joãozinho desde 1986, ao vivo. Em 1987, J30 desfilou com
"As Mágicas Luzes da Ribalta". Em 1988, cantou os 100 anos da
libertação da escravatura negra no Brasil, não lembro o título exato do enredo,
mas sei que falava dos negros do Egito e do Sudão, e da vinda deles para o
Brasil até a libertação.
Em 1989,
Joãozinho calou o mundo do samba, com o enredo inesquecível na mente de tosos
os brasileiros, até os que não gostam, não acompanham o samba: "Ratos e
Urubus Larguem Minha Fantasia". O rei, o gênio J30 chegou à avenida, palco
dos desfiles do Mundo, com seus mendigos, para gritar ao um "Chega!"
para a miséria, para a transformação de um país, rico, exuberante, num país que
massacra e marginaliza as pessoas, criticou a corrupção, o lixo que os seres
poderosos criavam e criam, faziam e fazem, do nosso país.
Impressionou!
Embora o marco, J30 e sua Beija Flor não conseguiram o tão almejado título.
Jamais esquecerei dos teus mendigos, mestre, e do Cristo mendigo coberto de
lona preta, com o escrito: "Mesmo Proibido, Olhai por Nós!"
Assisti,
na Beija Flor, mais três desfiles de Joãozinho. Em 90, ele estarreceu com o
"Todo Mundo Nasceu Nu", crítica que fez a uma cláusula colocada no
regulamento do concurso das escolas de samba que proibia o uso do nu nos
desfiles. Falou da humanidade, desde as cavernas, que não usava uma peça sequer
de roupa, até que o homem inventou de cobrir a genitália, e por debaixo dos
panos só faz sacanagem.
Em 1991,
sua genialidade impressionou, quando volta a criticar o Brasil, no enredo
"Alice no Brasil das Maravilhas". Falava do povo brasileiro perdido
na imensidão do país, tal qual Alice, perdida entre licores e pudins, que corre
confusa na floresta, enfrenta a Rainha de Copas e seus soldados, tudo após cair
num abismo, tal qual a Educação no Brasil. Sempre crítico. Sempre amante desse
imenso país, sempre inteligente, questionador, intrigante, revolucionário.
Em 1992,
J30 desfilou com o enredo "Um Ponto de Luz na Imensidão - Caixa Mágica - A
Televisão", numa homenagem a TV. Falou das novelas, dos telejornais, dos
programas de humor, programas infantis, nos shows, dos talkshows, de tudo que chega à casa de milhares de brasileiros,
pela tela da TV, como o próprio carnaval, levando arte, entretenimento, alegria
e educação, falando da invenção como um ponto de luz no fundo do túnel, uma
saída para levar a milhares de pessoas, mensagens de como mudar o mundo. Sempre
foi assim! Sempre J30 fez festa com discurso sério e fez desfiles geniais.
Saiu da
Beija Flor em 92 por baixo. Deixou a escola no sétimo lugar, depois de desfiles
gigantescos, memoráveis. Foi embora de Nilópolis, a sua Nilópolis, quase
expulso. Sua participação fez da Beija Flor uma escola gigante, uma instituição
que reformou seres humanos pobres, sem chances de vencer na vida, de uma cidade
fluminense carente, que hoje tem sua história e sua vinda que se confundem com
a da própria escola...
Com a
construção do sambódromo, que ergueu arquibancadas gigantescas e jogou para o
alto os espectadores da festa, J30 viu a necessidade de crescer as alegorias,
elevá-las até os olhos do espectador que ficasse na posição mais alta das
arquibancadas, enchendo os carros com destaques, mulheres bonitas, vestidas de
luxo. Assim foi também com as fantasias, criando costeiros, cangalhas ou
cadeirinhas, como chamam em Manaus, nas fantasias. Foi uma reformulação do
carnaval, uma revolução sem precedentes, como diria a carnavalesca Maria
Augusta, "uma coisa muito séria" para a festa.
Voltou a brilhar em 1997, com o enredo campeão "Big Bang - da Explosão do Universo Fez-se a Luz", algo assim, na Unidos do Viradouro, de Niterói. Revolucionou de novo. Marcou de novo a festa, principalmente com o abre-alas todo negro, no enredo em que ele falava da criação do mundo.
De tanto
amar o carnaval, com uma pressa infinita e não sei como explicar, passei a
fazer, confeccionar miniaturas do carnaval: os personagens, as alegorias. Foram
esses bonequinhos que me levaram ao carnaval de Manaus.
Financeiramente,
pude acompanhar os carnaval do Rio de perto apenas a partir de 2005. Joãozinho Trinta, meu mestre, não estava mais fazendo carnaval. Já havia vencido vários
derrames, mas sua alma estava ali. Foi depois dele que todas essas escolas hoje
do grupo especial, inclusive a Beija Flor, claro, passaram a ter essa cara.
Lembro que, com sua saída, a Beija Flor penou por mais de 5 anos, até se
reencontrar e voltar a fazer grandes desfiles, sem desmerecer, claro o trabalho
de Maria Augusta, em 1993, e de Milton Cunha, que fez os desfiles de 94 até 97,
dando lugar a uma comissão de carnaval, ora com 6, 7 ou 4 carnavalescos, todos
comandados por Laíla, o diretor de harmonia e carnaval da nossa Beija Flor,
que, assim como parte de membros desse grupo, trabalharam na escola na era Joãozinho.
Joãozinho
Trinta foi abandonado. Teve muito dinheiro e morreu pobre. Não dava importância
a coisas materiais. A vida, que ele enfeitou, vestiu de baianas, mestres-sala,
porta-bandeiras, comissão de frentes e adornou de alegorias, lhe foi ingrata?
Talvez sim. Talvez não. Tu mesmo, J30, assim como samba de 89, que cantava
"Xepá, de lá pra Xepei, sou da vida um mendigo e da folia eu sou
rei", foste pobre da vida e rico, rei da folia.
Encontrei
Joãozinho Trinta em Parintins duas vezes, na época do Festival de Parintins, e
pude fazer fotos ao lado dele. Apenas para o senhor eu fiz
"tietagem", saiba e para poucos teria coragem de fazer. Da outra vez
que o vi, foi no Rio, no ano passado, 2010, no desfile da Grande Rio que
homenageava os 20 anos do Camarote Nº 1, da Brahma, e que falava dos desfiles
mais marcantes do sambódromo a partir de sua criação.
A TV Em
Tempo apresentou agora uma matéria falando de J30 e sua partida. Eu sugeri à
equipe de plantão essa pauta, por saber de tua influencia entre nós artistas
envolvidos no carnaval local e no Festival de Parintins. Assim como Parintins
contribuiu com o carnaval carioca, dando movimentos às alegorias, tu contribuíste
com a plástica e com a participação de todos os artistas que foram daqui pra
lá, ajudar, trabalhar nas escolas do rio. Para mim, mestre João, essa matéria
da TV local é a minha forma simples de lhe agradecer por tudo, pela paixão e
amor ao carnaval, pelo amor a Beija Flor, e por parte da minha vida dedicada a
essa festa, de forma, até, abnegada.
O senhor,
que agora pode me ouvir e me ler, creio que seja assim, deve saber que plantou
sementes no mundo de muitas pessoas, como eu, com o seu trabalho e obra, e que
dedicaram e dedicam suas vidas inteiras ao fazer carnaval. Foste responsável,
mestre, por essa metade da minha vida. Inspirastes meus carnavais e ainda
inspiras. A Aparecida que desfila com minha contribuição, tem seus enredos
sempre levando suas mensagens para a humanidade e segue montada sobre suas
alegorias gigantescas erguidas em chassis com pneumáticos e com suas fantasias
sempre com costas suspensas, tudo assim como tu ensinaste.
Embora tua
partida, sempre estarão vivas, mestre, na minha memória, as imagens dos teus
desfiles, as tuas alegorias cheias de esculturas, ricamente decoradas, teu jogo
de cores, teu luxo e imponência, a exuberância, e tudo isso sempre norteará
nossos desfiles, tentando chegar perto daquilo que tu ensinaste, claro,
guardadas as devidas proporções. Saiba de uma coisa mestre Joãozinho Trinta,
estarás sempre entre nós em tudo aquilo que criarmos!
Descanse
em paz! No mais, é agradecer.
Valeu, João!
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